TEMPOS DE DICOTOMIA
O título parece distante da vida real. No entanto ele é uma poderosa referência aos dias de hoje, indo desde os salões suntuosos que abrigam diversas categorias de milionários até o mais modesto barracão, o casebre mais pobre, a calçada mais fria das pessoas carentes e mendigas. Aqui já temos uma inicial dicotomia: multimilionários e pobres numa relação de opressão/submissão. Logo veremos que a dicotomia apresenta várias faces e tanto pode se sustentar em estado de instabilidade estável, como pode se desequilibrar provocando dolorosas separações, desfazendo famílias, destruindo amizades. O perigo de destruição está sempre presente, pois estamos lidando com uma estrutura raciopsicossomática atrativa, capaz de dominar mentes e corações de um sem número de pessoas. Por que é atrativa? É necessário ao ser humano, quando bebê, ter a experiência de onipotência que em seus inícios é pura subjetividade, pura fantasia. Em condições de uma boa maternagem e paternagem aos poucos o bebê e depois a criança percebe seus limites, mantendo a onipotência como fundo de quintal, lugar propicio a atenuação da ansiedade e ao desarmamento das defesas com a consequente ascensão da realização objetiva da fantasia. Em indivíduos predispostos a dicotomia o leva de volta aos áureos tempos em que era Sua Majestade, o Bebê. 
Conheci a importância do termo dicotomia frequentando a ECO (Escola de Comunicação da U.F.R.J.). A dicotomia corpo/alma era amplamente discutida quando se falava de Platão (0bras Completas). Em resumo Platão dizia que aqueles que investigassem a própria alma poderiam vir a conhecer a Verdade (episteme) e ter uma vida virtuosa, no polo oposto daqueles que, despreocupados com a Verdade, eram enganados pelos sentidos, vivendo de aparências (doxa). O Homem epistêmico supervalorizado por Platão era por esse considerado virtuosamente superior ao homem da doxa. Aqui começa uma jornada aparentemente inócua, pois os discípulos de Sócrates cediam à sua argumentação e ao fim e ao cabo, com ele concordavam, tamanho era o prestigio, a liderança, a idealização, a capacidade argumentativa de Sócrates. (Freud- Psicologia de Grupo e Análise do Ego) Mas esse é apenas o inicio de uma estrada que, em seu desenvolvendo chegará a um insuportável grau de violência. A dicotomia benigna transforma-se em maligna. Podemos então dizer que de inicio estamos lidando com uma dicotomia light embora discriminatória. Porém, a difusão desta ideia de Verdade facilmente evoluiu para o exercício da onipotência e da ditadura implacável. O diálogo platônico, que já era tendencioso se retrai e só resta uma voz fascista a ditar o que é Certo e Errado. Temos agora um Dono da Verdade com o direito de invadir, dominar, negar, destruir a subjetividade e a vida daqueles que não rezam pela mesma cartilha. Esta é uma dicotomia maligna onde encontramos uma separação extremada e absoluta das oposições: convicção inamovível, ausência de zonas de transição, superioridade/inferioridade, verticalidade, opressão/submissão, ausência de diálogo dialógico (Martin Buber). No contexto em que vivemos estamos próximos dos graus máximos de violência e de desrespeito ao individuo. A dicotomia maligna tem uma ação devastadora, pois ela nos remete a sangue, à matança indiscriminada, ao genocídio, à tortura, etc. Por trás destes atos visíveis nos deparamos com o oculto fundamento sujeito/verdade (Marcio do Amaral), garantia enganosa da Verdade do vocábulo: superioridade incontestável, convicção irremovível diante de um outro inferior, impossibilidade do dialogo dialógico, discriminações, verticalizações, dominações. O sujeito dicotômico alimenta-se de suas impressões, fantasias, necessidades psíquicas, projeções e introjeções comicobizarras, sonhos de grandeza, etc. Esta sustentação sujeito/verdade é multimilenar e já causou muito sofrimento em ocasiões de aliança explícita com a crueldade destrutiva. Mas ela existe também na vida comum cotidiana dentro de um marco civilizado. No período vitoriano/patriarcal --- por conseguinte na vigência do paradigma repressivo --- encontramos formas light da dicotomia dominação/submissão, superioridade/inferioridade. Mas há que desconstruir estas formas menos explicitamente agressivas, não só para o bem privado, mas também para o bem público pois elas certamente robustecem a dicotomia maligna.
Examinarei, a seguir, a dinâmica de algumas das muitas dicotomias:
1-  Dicotomia Feminino/Masculino
2-  Dicotomia Corpopsique/Mente
3-  Dicotomia Mãe/Bebê
4-  Dicotomia PalavraCientifica/PalavraLeiga
5-  Dicotomia PalavraImperial/PalavraCriativa

   DICOTOMIA FEMININO/MASCULINO
Numa sociedade machista, patriarcal o lugar da mulher é a inferioridade. A mente do homem, com sua capacidade intelectual, estaria em um nível superior à da mulher. O reino do feminino era o psiquessoma, local de acolhimento, bondade, preocupação com o próximo. Os modos masculinos --- objetividade, impiedade,  implacabilidade, intelectualização, poder, riqueza material --- eram colocados em um patamar superior à da mulher/feminina composto de sensibilidade, empatia, compaixão, amor, intuição. O masculino era o Sr. da Mente e o feminino a Dona do corpo/psique. Esta última provoca no homem uma inquietude de tal ordem que só o exercício do poder o aplaca. O corpo/psique é, então, ignorado, negado, colocado em um plano inferior. Os costumes e estilos femininos são vistos como fraquezas, necessárias sim, mas que deveriam ficar confinadas ao interior do lar. E mesmo aí elas são desvalorizadas, servindo para realçar a força da racionalidade (isenta de sentimentos) do homem (Armony). Estamos diante de uma dicotomia: Homem é Homem e Mulher é Mulher. Habitam planetas diferentes: homem é de Marte e mulher é de Vênus. Impossível uma relação intersubjetiva. Difícil uma relação interpessoal. São línguas e valores diferentes e por isso mesmo brigas e indiferenças soam constantes. Vivi-se em estado de beligerância dicotômica onde o homem exige a obediência da mulher. O casal heterossexual não se entendia: o homem não penetrava afetivamente no planeta feminino (Venus) nem a mulher penetrava no planeta masculino (Marte). Com a revolução feminista homens e mulheres passaram a habitar o mesmo planeta. Ambos pertencem ao planeta Terra, mas moram em diferentes lugares, mais distantes ou menos distantes. O diálogo se torna possível. O que antes era trombada passa a ser conflito que acaba se tornando, na hipótese otimista, um esforço de integração. O diálogo surdo-mudo transforma-se em um diálogo-dialógico. (Martin Buber) Mas ainda estamos longe de conseguir uma radical relação intersubjetiva que mais parece uma utopia. Dela podemos nos aproximar (o que já é um grande feito), mas dificilmente conseguimos torná-la parte da cultura ocidental.

DICOTOMIA CORPO/PSIQUE --- MENTE
Diferente da anterior --- uma dicotomia externa --- vou focalizar agora uma dicotomia interna, aquela que se passa no interior da unidade Ser Humano. Nessa dicotomia encontramos duas situações: 1- a mente domina o psiquessoma e b- o psiquessoma domina a mente. Neste segundo caso o corpo/psique não mediado adequadamente pela mente, exerce uma liberdade exagerada atropelando a liberdade dos demais. “É proibido proibir” é a palavra de ordem provocativa. A mente é então convocada para a tarefa de inibir a exagerada permissividade narcísica, tarefa da qual abdicou. Ela volta a exercer sua função mediadora e moderadora da realidade social e da integração psique/corpo. A recuperação da função mediadora da mente pode ser mais bem entendida acompanhando o nascimento e desenvolvimento do bebê.

         DICOTOMIA MÃE/BEBÊ             
(Winnicott)
O bebê é puro impulso: impulso instintivo de satisfação de necessidades (fome, sede, carinho, etc.), impulso narcísico do ego de autoconservação, autorrealização, expansão. A mãe é a guardiã do equilíbrio psicomentessomática. É a mãe quem complementa a mente do bebê protegendo seu self e ego da realidade externa (cuidando, por exemplo, de que não haja um excesso de estímulos) e dos impulsos internos (evitando, por exemplo, que a curiosidade exploratória – desejo de expansão – faça-o cair de uma grande altura, ou que tome um choque elétrico, ou que se perca na rua). Tendo uma mãe suficientemente boa o bebê assimila e adquire uma adequada mente, um adequado ego, um adequado self, tornando-se capaz de se adequar à realidade. Uma mãe suficientemente boa e um ego suficientemente bom darão limites, liberdade e permissão para eventuais transgressões. Caso contrário o self se dilatará excessivamente e a pessoa sentir-se-á com o direito de realizar todos seus desejos e vontades. Então: se a mãe não consegue colocar limites para a criança, se não consegue saudavelmente frustrá-la, submetendo-se aos seus desejos e permitindo um comportamento transgressivo antissocial, estará estimulando um narcisismo descomedido. A criança que cresceu dentro desse clima sente-se no direito de ter tudo para si. Os outros só existem para servi-lo em suas necessidades materiais e psíquicas. Qualquer limite que lhe é anteposto é sentido como um crime de lesa-majestade já que ele continua se sentindo como “Sua Majestade o Bebê” que por direito divino terá a aprovação e a submissão de todos que terão o sagrado dever de servi-lo.
  A reintegração da mente no psiquessoma traz consigo um precioso presente: a espontaneidade. Ela lhe permitirá sentir seus mais profundos sentimentos e fantasias, abrindo-lhe a porta infinita da sensibilidade pessoal e social. Essa espontaneidade tem seus perigos. Ela está próxima da fronteira do desacato. Caso não se atente, esta posição poderá levar a abusos. Também a criatividade necessita da espontaneidade para acontecer, mas deverá fazê-lo cuidando de evitar excessos tais como predomínio autistico da subjetividade. A criatividade depende de um clima permissivo que, se exagerado, propiciará abusos. Haverá exceções, com rupturas estranhas que poderão representar um salto para a frente no desenvolvimento da humanidade. 

DICOTOMIA PALAVRA CIENTÍFICA/PALAVRA LEIGA
Até a época cientificista, a palavra tinha uma imprecisão que permitia usá-la poeticamente. A palavra estava integrada no conjunto corpo/psique/mente. Havia então uma liberdade de seu uso e ela podia ser ouvida em sua polissemia permitindo ao ouvinte dar uma interpretação singular acorde à sua subjetividade. A denotação era uma parte pequena da palavra, cercada que estava por todos os lados pela conotação, permitindo seu amplo uso: uma grande variedade de sentimentos e uma grande liberdade de interpretação. Com as ciências exatas aboliu-se a conotação. A palavra tinha de ser precisa e designar exata e conceitualmente o objeto, não permitindo nenhum devaneio. A palavra passou a ser um produto da mente dissociada do corpo/psique. Acabava-se com a poesia e a diversidade da fala. Passou a haver a preocupação de se dizer a palavra precisa o que tirava a espontaneidade do discurso tornando-o esquemático e desinteressante. A palavra perdeu seu encanto, sua liberdade, seu potencial vaporoso e fantasmático. Todos deveriam entender as coisas exatamente da mesma maneira. A riqueza da diversidade humana se perdia. Aquilo que na física era útil, necessário, eficiente, tornou-se uma camisa de força para a manifestação da complexidade, diversidade e sutileza da alma humana. Eliminava-se parte do mundo, simplificando-o através da ciência. Tudo poderia ser explicado por cálculo. Mas para isso a palavra tinha de ser rigorosamente exata, rigorosamente intelectual, rigorosamente mental, reprimindo-se o corpo/psique e consequentemente a conotação das palavras. Criou-se assim uma dicotomia onde o dominador era a denotação. A resistência a esse domínio foi e é fruto da necessidade que o ser humano tem de viver, ao mesmo tempo a objetividade da ciência e a subjetividade da poesia.    

DICOTOMIA PALAVRA IMPERIAL/PALAVRA CRIATIVA
No período de dominação patriarcal a palavra do patriarca era a palavra verdadeira. Aqui está em ação o fundamento sujeito/verdade que trouxe dificuldades ao entrosamento. Em certos casos a prosódia fica prejudicada. Aparecem dificuldades na elocução e na formação de frases: gagueira, monotonia, atropelamento de sílabas, alongamento das vogais, voz em falsete, e outros distúrbios. Estas dificuldades se deveriam em parte ao olhar e falar imperioso do Grande Chefe que não admite contestações, obrigando o filho a se recolher à sua insignificância para poder ter, uma moradia e um pouco de amor. Esta situação parecia estar mudando, mas em um movimento inesperado, as dicotomias malignas retornam.  Mais uma razão para se exercer uma redobrada atenção às aparentemente inócuas dicotomias light.
Encontramos diferentes dicotomias a cada esquina. Teríamos então textos intermináveis ou quase. Creio que as aqui apresentadas são suficientes para nos alertar quanto a dicotomias light. Não basta lutar com as dicotomias pesadas. É importante também estar atento ao modo dicotômico benigno de relação para evitá-lo, lutando pela integração que é o desarmamento da dicotomia. 

                                        Nahman Armony
   
   





               Trajetórias do tempo. 

Estamos em um período de transição. Tudo é questionável, modificável. Enquanto as gerações mais jovens têm maior facilidade em se adaptar, as mais velhas veem-se diante de obstáculos difíceis de ultrapassar. Assim é com a semi-abstração ‘TEMPO’. Na atualidade o nosso primeiro tempo ainda é o de brincar. Ao brincar o tempo desaparece; deixa de existir como tempo e passa a existir como prazer, como ilha encantada, como paraíso.
No segundo tempo quebra-se a uniformidade e a continuidade do tempo. Esse segundo tempo é o do dever, da obrigação. É quando o tempo faz a sua aparição.
Será então preciso começar a nele pensar e, mais tarde a nele se preocupar. Os primeiros contatos e contratos com os futuros tufões temporais serão benignos. São apenas chuviscos refrescantes. É dada à pessoa um tempo razoável, apropriado à velocidade singular humana, para terminar ou pontuar alguma tarefa. O tempo permanece tranquilo. Não é preciso correr mais que o tempo para realizar a tarefa, pois há uma adequação entre tempo e realização. Vários fatores porém quebram este equilíbrio: certas tarefas só podem ser realizadas se a velocidade de feitura ultrapassar o tempo de brincar – o tempo descompromissado e por isso mesmo não existente. Quando vemos a humanidade disputando os 100 m. ou 1000 m. com obstáculos percebemos que estamos tentando correr mais rápido que o tempo, exigindo uma modificação da velocidade dos tecidos e dos líquidos corporais que lutam pela singularidade da pessoa. Por algum tempo o organismo mantém o seu ritmo, mas, finalmente cede à força da cultura, da mentalidade reinante, não conseguindo resistir. Temos agora mais um robô, um boneco sem vontade que tentará obedecer o ritmo imposto pelo social que de inicio se insinua parecendo poder ser controlado e finalmente passa a ser uma força poderosa de seu pensamento e comportamento.  Tudo isso se passa de uma subjetividade social que força a barra para um comportamento acelerado, acima do limite temporal. Exigimos então que o tempo corra mais depressa. Vemos então multidões se atropelando para não perder o tempo e sua posição social. O tempo urge e ruge como um leão raivoso e aqueles que não abrem mão de sua singularidade, atrasam-se em relação ao tempo que lhes é dado pela Sociedade, pelo Estado e pelos Costumes.  O Ser Humano ruge como leão e debate-se como um touro, para se manter precariamente na cacunda do touro, a espera de tempos mais acordes com as capacidades humanas de tarefas e fruições. Ao ser forçado a participar da correria o ser humano que tem o seu tempo próprio e que dele não abre mão, vai-se atrasando em relação ao tempo que lhe é dado pelo Estado e pela Sociedade. Preserva o seu tempo, mas perde o seu lugar.. Começa então a se forçar a correr. Por enquanto a pressa não é coisa dele: é coisa dos costumes. Ele tem seu tempo, a sociedade tem outro tempo e tudo estaria bem se não houvesse prazos para o cumprimento de obrigações. Torna-se cada vez mais difícil manter o tempo pessoal autêntico. A pessoa passa a transferir a pressa não à tarefa, mas ao corpo próprio incorporando a pressa ao organismo. Temos agora um tempo acelerado interno. A velocidade maquínica impôs-se e agora as pessoas correm mesmo quando isso não é necessário. A velocidade torna-se interna e a aflição de ‘chegar lá’ já não depende do ambiente externo; depende do próprio funcionamento de órgãos que trabalham febrilmente. Não é uma pressa com objetivo. É agora uma pressa estrutural. Antes era: devo correr para entregar em tempo o trabalho. Com o tempo a frase muda para “Devo correr para poder viver nessa sociedade.” O resultado disso são ansiedades, depressões, distúrbios psicossomáticos, e outros incômodos e sofrimentos.

                                                     Nahman Armony    



    


    



                                                     





        WINNICOTT E A CRIATIVIDADE

A palavra criatividade, que até então dormia tranquilamente sua letargia secular, sofre um estremecimento eletroquimiomagnético quando Winnicott a sacode enxotando-a para um novo caminho paradigmático. Tento acompanhá-la nesta jornada, mas logo me confundo.
Vendo meu desespero, Winnicott toma-me carinhosamente pelas mãos e me encaminha para a remota infância com a promessa de que, findo o processo de entendimento e assimilação saberei distinguir os dois significados de criatividade.        


Winnicott nos fala de uma criatividade primária. Seria uma criatividade que surgiria a partir da subjetividade pura, ainda sem objeto. Um bebê com fome tem uma sensação física. Esta sensação física vem acompanhada de uma atávica intuição de que existe um Acontecimento capaz de aliviar esta fome. É uma sensação vaga, nebulosa que vai se delineando cada vez mais claramente na medida em que as experiências de mamada se repetem. Usando uma linguagem fotográfica, a resolução é cada vez mais nítida. O objeto que vai se delineando, a princípio não tem existência própria. É criação/extensão do bebê. Este ainda não tem noção de eu e outro. Na medida em que o fenômeno seio/mãe/circunstâncias vai se tornando mais nítido o bebê começa a distinguir o eu do não-eu. O cenário está pronto para o lento caminhar em direção ao objeto transicional/espaço potencial. O objeto que era um objeto inerte, sem significado – um paninho pendurado no berço – é sequestrado pelo bebê e levado ao rosto onde, em um espaço potencial adquire o status de objeto transicional, um objeto que é ao mesmo tempo lenço e mãe, interno e externo, um objeto precioso, protetor, confortante só deixado no limbo e, portanto só  guardado pelo esquecimento, com o passar da infância. Pois bem, enquanto o objeto é só subjetivo, isto é, quando não há distinção entre eu e não-eu a criatividade seria chamada de primária. Uma criatividade que perdura por traz e por entre fenômenos (objetos) já impregnados de externalidade.
Recapitulando: de inicio temos apenas sensações, em um cenário exclusivamente subjetivo. Sobre a sensação aplica-se aquilo que Winnicott chamou de “elaboração imaginativa de função” através da qual um mundo de fantasia abre-se para o bebê. O passo seguinte acontece quando a mãe ‘falha’, provocando uma desilusão no bebê, com a ameaça da perda de uma ‘continuidade de ser’. Cria-se um gap na comunicação mãe-bebê, da qual o bebê se defende através da formação de pelo menos duas invenções: 1- a criação da  mente intelectual e 2- a criação do objeto transicional/espaço potencial.

Cria-se um ‘gap’ na relação mãe-bebê do qual o bebê se recupera criativamente através de 1- formação de uma mente intelectual e 2- através das formações transicionais ---- objeto transicional/espaço potencial.  
Como acima eu estava dizendo, a dor da fome sofre uma “elaboração imaginativa de função” e aparece aquela sensação vaga e indefinida de existir um objeto que corresponde à fome. Quando surge o seio o bebê dirá “Ah aqui está o objeto que eu elaborei imaginativamente a partir da função digestiva”. A sensação vaga permite uma elaboração imaginativa de função. O Acontecimento SEIO agora apresenta uma dupla face: ele é subjetivamente concebido e objetivamente percebido. Este pequeno ser humano deve agora, ao mesmo tempo, aprender a conviver com o paradoxo e a distinguir o objetivo do subjetivo. Acrescenta-se, pois à elaboração imaginativa um reforço dado pelo reiterado reaparecimento do objeto objetivo seio. Este constante reaparecimento não impede que o mundo de fantasia continue a existir assim como continua a funcionar a elaboração imaginativa de função. Ao lado da elaboração imaginativa de função ou com ela misturado continua processando-se uma tomada de conhecimento objetivo do mundo exterior. Como o seio continua investido de fantasias, o objeto objetivo seio agora é subjetivamente concebido e também objetivamente percebido. Embaralham-se o subjetivo e objetivo sem deixarem de realizar suas funções.

Outro aspecto da criatividade tem sua origem no espaço transicional. E aqui criatividade tem a ver com contacto vivo com o mundo externo. Significa dar um sentido à vida. Significa sentir que o mundo lhe pertence e que ele pertence ao mundo. Ele experiencia o mundo e o mundo o experiencia. Ele é o mundo e o mundo é ele. Esta sensação/acontecimento tem seu precursor na dependência absoluta do bebê. Esse conjunto é a experiência de onipotência do bebê. Sua segunda etapa nós a encontramos na experiência de transicionalidade, de espaço, objeto e fenômenos transicionais, onde ele já reconhece a realidade externa (objeto objetivamente percebido), mas impregna este objeto de subjetividade. Enquanto protegido pelos pais e enquanto intelectualmente imaturo, predomina o subjetivamente concebido. Aos poucos a objetividade torna-se uma necessidade e encontram-se várias formas de mistura e convivência do subjetivamente concebido e objetivamente percebido.
A criatividade depende de uma mãe suficientemente boa capaz de um holding adequado, isto é, um holding que permita o bebê aceder ao espaço potencial. O holding é uma nova maneira de ver e viver a vida, uma nova perspectiva, diferente do autoritarismo, dever, imposição, falso self, etc. Juntamente com o holding temos a espontaneidade, o espaço transicional, o verdadeiro self.
O viver criativamente tem a ver com a força vital que lança mão dos instintos para tornar-se um objeto ontologicamente presente no mundo. Esses instintos evocados pela força vital dão existência ao viver criativo. O viver criativo guarda a convicção de primeira possessão; daí o seu forte sentimento de pertencimento ao Universo. Sua origem está na experiência onipotente vivida pelo bebê; essa origem permite encontrar poesia e arte nas coisas mais simples existentes no Universo. Estou agora falando da capacidade de envolver o objeto objetivo e penetrá-lo de subjetividade. Isso fica bem exposto no filme Paterson onde um simples objeto inanimado é vivido intensamente em inúmeras dimensões, ganhando uma aura de pura poesia.
Interessa especular se criatividade deve ganhar o qualificativo de primário?  
Talvez a palavra ‘primário’ tenha a função de acentuar a importante contribuição do bebê existente em todo ato de criativo.    
                                 
                                    Nahman Armony

  

INSTINTO MATERNAL

PARADOXO E CONTRADIÇÃO


A velha e resistente questão sobre a incapacidade dos animais ditos irracionais serem incapazes de simbolizar, mantendo-se aprisionados aos instintos, em contraste com os seres humanos dotados de pulsões, de um cérebro simbolizador, reaparece quando releio o livro de Elizabeth Badinter "Um Amor Conquistado; o Mito do Amor Materno."
O tema é de difícil abordagem, pois os termos e definições usados não têm uma fronteira definida. Veja-se, por exemplo, a atividade dos castores que nas suas obras de engenharia se deparam com diferentes problemas. Existe um impulso de construção que podemos chamar de instinto, sem porém perder de vista que estamos lidando com uma ideia abstrata que irá se desdobrar em diferentes desenhos concretos. Seria conveniente usar a palavra instinto para esse impulso? Ou ficaríamos com a ideia de que a palavra instinto refere-se a uma repetição a uma repetição tal e qual? Badinter terá razão ao dizer que a contingência e o particular são exclusivos do ser humano? Diz ela: "Parece-me que devemos deixar a universalidade e necessidade aos animais e admitir que a contingência e o particular são o apanágio do homem". Então os animais de quatro patas, mamíferos e outros, são incapazes de se adaptar aos ambientes e aos comportamentos? Acho eu que a palavra 'instinto' porta tanto a necessidade e universalidade quanto a contigência e o particular. O castor e todos os castores (universalidade) têm necessidade de construir represas. Mas, ao construí-la vai se deparar com situações particulares que só poderão ser enfrentadas e resolvidas com dispares ações (contingentes e particulares).                                                                                           Vamos comparar o comportamento do castor com o comportamento da mulher. Em semelhança ao castor sua universalidade está no desejo de ser mãe. Mas a maneira de ter o filho diverge de pessoa para pessoa. Poderíamos então dizer que o termo instinto tem dois tempos? O tempo da universalidade e o tempo das particularidades? De qualquer forma, a palavra instinto não pertence somente aos animais irracionais. Ela se aproxima de ambos: homem e bicho. Menos uma diferença marcante (vide o conceito de inteligência emocional). Mais uma aproximação do Homem ao Animal. Menos a pulsão como uma exclusividade absoluta do Homem. Se sairmos da nomenclatura psicanalítica poderemos usar instinto/pulsão tanto para um quanto para outro sem ter de procurar um termo diferenciador. 
Transportarei essa fala para a questão que orienta esta comunicação breve e sem compromisso (existe ou não um instinto maternal?). Podemos dizer que tanto o homem racional quanto o animal sofrem de um mesmo male. Impossível distinguir o genético do ambiental. E aqui não estou falando de uma observação, mas sim de algo que se aproxima de um método epistemológico de Einstein. Evidentemente este método epistemológico convive com o método das evidências. Mas vamos ao meu tecido. Desde o início o ser vivo interage com o ambiente. Este ser vivo já vem com direcionamentos que sofrerão alterações no contato com o ambiente. Na verdade o ambiente já está dentro do corpo vivo pois ele já viveu incorporações e desincorporações. A mitocôndria que poderia ser hipoteticamente inimigo para o desenvolvimento é, pelo contrário, necessário à vida. 
A fórmula então seria: genética + ambiente. E isto desde o início da vida planetária. 
Eu prefiro ficar com a seguinte fórmula: instinto materno em interação com acontecimentos e comportamento. 

AFINAL O QUE É O HOMEM TRANSICIONAL?
         Posso tomar “O homem transicional” como exemplo de um gesto espontâneo? Já há tempos venho falando dele. Mas ele me surgiu na mente de forma inesperada num momento de lazer em que toda a minha libido dirigia-se para a areia e a água do mar. Não fui eu consciente que inventei essa expressão. É verdade que eu vinha pensando nas características do jovem contemporâneo achando que a palavra borderline já não dava conta de uma nova personalidade jovem e nem dava conta da necessidade de o psicanalista encontrar novas maneiras de relacionamento com esses jovens. E eis que me surge, vindo diretamente de um trabalho psicossomático do qual não tive consciência a expressão Homem Transicional. Embora eu possa chamar esse trabalho de MEU e embora se me apresentasse até certo ponto claro e compreensível, trazia zonas nebulosas que precisariam ser mais sondadas.
Quando espontaneamente falei de trabalho inconsciente apareceu espontaneamente a palavra MEU; já a palavra EU aparece em contexto de consciência.                


                                                                       Nahman Armony

     
 
 
 

FOLHAS AO VENTO

ESTILO RABISCOS



 
 
 Experiência de Libet – o potencial de prontidão precede de 550 milisegundos a realização do gesto. “A interpretação clássica desse experimento diz que o livre arbítrio, ou seja, a ideia de que nós somos os arquitetos de nossas ações, é uma ilusão e que a consciência é uma espécie de efeito colateral de um processo inconsciente.” Crítica de Schurger: “ Libet argumentava que o nosso cérebro já decide mover-se antes de haver uma intenção consciente. Nós argumentamos que o que parece ser um processo de decisão pré-consciente não é reflexo de uma decisão. Parece ser, mas apenas porque essa é a natureza da atividade cerebral espontânea. Se estivermos certos, o experimento de Libet não fornece nenhuma evidência em desacordo com o livre-arbitrio.”

Minha tentativa de explicação. Um pouco de neurociência especulativa.  Premissa 1: necessidade de aumento da percepção do ambiente. Quanto mais ampla a percepção mais o ser vivo poderá se defender, atacar e sobreviver (Darwin). Poder-se-ia aqui falar de vontade de potência como equivalente a um instinto primário. Imagino então o seguinte. Numa primeira etapa os animais só percebiam o ambiente quando os seus corpos tocavam no ambiente. O ambiente externo ao corpo reagia ou com irritação e então se afastava do fragmento do ambiente no qual por acaso tinha tocado, ou então o introduzia no seu próprio organismo para se alimentar, fosse um fragmento mineral fosse um outro ser vivo que era então decomposto em suas partes (proteína, gordura, açúcar, etc.) Tanto um quanto outro processo só ocorria quando o acaso colocasse a substância viva com um objeto inanimado ou com um ser vivo que então lutava para não ser destruído.  Interessava então à sobrevivência poder perceber o outro, antes de tocá-lo. Desenvolveram-se partes do cérebro que permitiram essa percepção.  Na revista ‘Mente e Cérebro’ de novembro de 2016 aparece a figura de um verme primitivo ao qual foi dado o nome de CAENORHABDITIS ELEGANS. Esse verme se alimenta de bactérias do solo, não tem cérebro nem consciência, mas usa seus reflexos para encontrar comida, procriar e se defender tanto de predadores quanto de lesões.   Imaginemos um jacaré olhando com aqueles olhões. O cérebro se desenvolveu paripasso com o aumento da capacidade de ver. Ou pode-se dizer exatamente o contrario. A necessidade de ver fez com que uma parte do cérebro se desenvolvesse. A capacidade de ver o mundo é concomitante às transformações funcionais. Uma única substância com inúmeros atributos dos quais só percebemos a atributo extensão e o atributo incorporal (mental). (Acho que hoje já se poderia heuristicamente dizer que a Teoria da Relatividade é outro atributo, assim como o é a física quântica ou talvez também as geometrias não-euclidianas, ou a representação do mundo através de equações complicadas inteiramente fora do senso comum.) Voltando aos olhos do jacaré: ele enxerga o que é externo a ele mas não desenvolveu o cérebro para enxergar os seus processos mentais e psíquicos internos. Esta proeza foi realizada pelo homem que desenvolveu uma parte do seu cérebro no sentido de ver o que se passa dentro da mente e da psique. Estou falando principalmente de autoconsciência, ou melhor, de autopercepção. Não se pode separar o desenvolvimento neuronal da conquista mental. Ambas são concomitantes, ocorrem ao mesmo tempo. Voltando ao que eu já disse são dois aspectos de um mesmo fenômeno. No dizer de Spinoza, são atributos da Natureza. Há um crescimento e arranjo cerebral que permite ver não só o externo, o que está fora do ser, como também permite ver o que está acontecendo dentro do próprio cérebromente. Isto através de dois modos: por introspecção e por aparelhos de imagens dinâmicas.   Parto da seguinte premissa: a todo movimento da mente (portanto a todo pensamento) corresponde um movimento dos elementos cerebrais. É necessário que existam certas estruturas, funções e dinâmicas cerebrais para que o animal perceba com os seus órgãos de sentido aquilo que está acontecendo no mundo. A palavra ‘perceba’ poderia ser substituída por ‘consciência’. O primeiro patamar da consciência eu a chamo de ‘consciência da pura ação.’ Num segundo patamar encontramos a consciência reflexiva que é a capacidade mental/cerebral de agir inteligentemente ao resolver algum problema externo sem porém ter consciência de que está resolvendo problemas pois esta última encontra-se no patamar da autoconsciência, privilégio dos humanos que observam seus pensamentos e ações. Darei um exemplo da consciência reflexiva que os animais reflexivos partilham com o ser humano. Um cão foi deixado para trás numa encruzilhada. Ele cheira uma primeira via buscando o cheiro do dono. Não há cheiro. Entra então resolutamente na 2ª via. Estamos diante de uma inteligência ou consciência reflexiva. À sua maneira canina o cão pensou: “se só há dois caminhos e meu dono não passou por este caminho só pode ter seguido pelo outro caminho”. Seu aparato cérebromental permitiu esta percepção/ação sem que percebesse que estava fazendo um raciocínio lógico. Já o homem desenvolveu um cérebromente que lhe permite ter autoconsciência. São modificações cerebrais que ampliam o campo de conhecimento dos seres vivos. Seria possível encontrarmos modificações cerebrais para os chamados fenômenos paranormais? Dentro da premissa colocada por mim a resposta só pode ser positiva. A meditação não é um fenômeno paranormal. Mas está mais próximo desta fronteira. Foram detectadas alterações na dinâmica cerebral nos monges que realizam meditação. Esta última afirmação tira a força do que venho dizendo, mas vale a pena colocá-la para nos afastarmos de acontecimentos milagrosos ou excepcionais, pois os bons motoristas de taxi londrinos têm o córtex temporal ou parietal aumentado em comparação com a população não taxista e taxistas incompetentes. Preservamos assim a ideia de uma evolução cerebral/mental que talvez dê pulos, mas não são campeões de salto à distância.

                                                              Nahman Armony